Ternurinha nos cinemas

13/02/2019 2618 visualizações

Uma das mais concorridas atrizes de musicais no Brasil,  Malu Rodrigues troca os palcos pela tela de cinema onde viverá Wanderléa no longa “Minha fama de mau”, que estreia nesta quinta, 14 de fevereiro.  O filme conta a história de Erasmo Carlos (estrelado por Chay Suede) e da Jovem Guarda. O ator Gabriel Leone interpreta Roberto Carlos. Uma das cantoras mais queridas de sua geração, que marcou época e impôs novos estilos, Wanderléa lançou sua autobiografia em 2017 pela Editora Record. A pesquisa e edição são assinadas por Renato Vieira.

As páginas da autobiografia revelam histórias saborosas vividas pela cantora, como a amizade com Roberto Carlos, com quem teve o primeiro beijo, e Erasmo Carlos, que tentou diversas vezes namorá-la, durante o auge da Jovem Guarda. Mostram ainda as dificuldades que enfrentou nas gravadoras, sempre avessas a investir em projetos originais e autorais. Tanto que nos cinco primeiros discos, na CBS, ela gravou basicamente canções de Roberto e Erasmo e, em sua maioria, versões de músicas estrangeiras, muitas vezes contra a sua vontade. Foi só em 1972, quando foi para a Polydor e fez o LP “Maravilhosa”, que tinha Nelson Motta como assistente de direção, que ela conseguiu gravar nomes como Gilberto Gil, Assis Valente, Jorge Mautner, Hyldon, Paulinho Tapajós e Roberto Menescal, entre outros. No segundo disco pela empresa, “Feito gente” (1975), ela gravou Gonzaguinha, João Donato, Joyce Moreno, Sueli Costa, Luiz Melodia e Hermínio Bello de Carvalho.

Em meio à rotina frenética de shows e gravações, Wanderléa enfrentava o drama do acidente de José Renato, seu namorado, então com 22 anos. Numa viagem a uma fazenda em Petrópolis, o filho de Chacrinha resolveu mergulhar na piscina e se machucou seriamente, ficando tetraplégico. Wanderléa ficou noiva e casou com ele, com quem manteve uma relação que durou sete anos, alguns dos quais vivendo nos Estados Unidos, para onde se mudaram em busca de tratamento. No quesito grandes amores, depois de um namorado que chegou a brigar com Roberto Carlos, por ciúme do amigo e companheiro de shows de Wanderléa, ela encontrou Egberto Gismonti, com quem namorou e mantém até hoje laços de amizade. Com o músico, que escreveu a orelha deste livro, Wanderléa migrou para a EMI-Odeon e gravou “Vamos que eu já vou” (1977), disco com arranjos e produção executiva de Gismonti. Na companhia, ela fez ainda “Mais que a paixão” (1978), com produção de Renato Corrêa e composições de Djavan, Altay Veloso, Capinan, Moraes Moreira e o próprio Gismonti. Nessa fase da carreira, Wanderléa disse não ter tido muito apoio da gravadora na divulgação, mas mostrou que era mais que uma musa da jovem Guarda. Era uma grande cantora, versátil, inteligente e com total domínio de sua arte.

“Cantei boleros, choros, músicas de carnaval, gravei os tais ‘malditos’ da MPB (benditos sejam!), experimentei sonoridades eletrônicas, rasguei o verbo na hora da raiva e, em uma nova estação, me reencontrei com minhas origens. Ao longo de todos esses anos, transgredi, segui as regras da sociedade, me recolhi e logo em seguida fui em frente”, relembra, em outro trecho do prólogo. As primeiras transgressões da Ternurinha começaram em casa. Seu pai, descendente de árabe e com uma educação rígida, a acompanhava no rádio e na gravadora, mas, em determinado momento, achou que a “brincadeira” estava indo longe demais. Ele não queria que ela seguisse a carreira artística, mas Wanderléa logo conseguiu independência financeira e, com ela, a independência da família. Quando comprou um carro, o pai também não gostou. Dirigir, na década de 60, não era coisa de mulher. Suas roupas eram um capítulo à parte. Com o irmão estilista, ela inventava os próprios figurinos, ousadíssimos para a época. A moda da minissaia ganhou força com ela, para horror da sociedade da época e delírio das fãs mulheres. Na época do programa Jovem Guarda, foi criada a grife Ternurinha, com pagamento de royalties e tudo, no que ela considera o “marco zero do mercado consumidor jovem no Brasil”. “Enquanto a minissaia criada por Mary Quant ficava a um palmo do joelho, a minha era quatro dedos abaixo da pélvis”, relembra ela, num dos capítulos do livro.

Wanderléa, assim como Roberto e Erasmo, não gostava de falar de política. Mas, em termos de comportamento, a sua geração foi uma das mais transgressoras. Além das roupas e da atitude no palco, na vida pessoal ela namorava sem culpa, viajava sozinha e chegou a fazer dois abortos, dos quais fala abertamente. “Apesar das minhas convicções, passar por dois abortos, aos 20 e poucos anos, foi difícil. Não fiquei imune aos conflitos pessoais e psicológicos, que, admito, se tornaram mais presentes na maturidade. (…) Não cabe a ninguém discriminar essa atitude. Devemos apoiar e respeitar essa escolha, pois a própria mulher é a que mais sofre. A legislação deve ampará-las sem que elas sejam julgadas por esse ato”, escreve.

A maternidade traria alegrias e tristezas para a vida de Wanderléa. O primeiro filho, com o marido Lalo, nasceu em 1981. Ela vivia um momento incerto na carreira. Os álbuns mais autorais não tiveram boas vendas. “Alguns homens de gravadora têm responsabilidade nisso. Eles ainda queriam a Ternurinha, argumentando que em time que está ganhando não se mexe, e não bancaram o mínimo necessário de divulgação pelo simples propósito de boicotar meus novos voos.” Sem o público da Jovem Guarda e sem o reconhecimento da crítica, ela também teve seu estúdio roubado, com todos os equipamentos comprados nos Estados Unidos sendo levados por ladrões. Foi nessa época difícil que conheceu Lalo, músico chileno que faria um show com ela numa boate em São Paulo. Os dois logo passaram a viver juntos e veio a gravidez. Ela tinha 35 anos quando Leonardo nasceu.

Quando o menino estava prestes a completar 2 anos, ela e Lalo decidiram comprar uma casa na Zona Oeste de São Paulo, para dar a Leo uma infância mais próxima à natureza. No dia 1º de fevereiro de 1984, Wanderléa tinha uma gravação no programa de Flávio Cavalcanti, no SBT, para divulgar seu mais recente compacto. Antes de sair, tirou algumas fotos com o menino. As últimas imagens que guardaria do filho, que, sem ninguém ver, saiu da casa e caiu na piscina. Não houve tempo para o socorro. Ao contrário do marido, que se recolheu, a cantora decidiu nunca deixar de falar no menino. “Percebi que as alegrias que tive com meu filho durante seus 2 anos e 3 meses de vida foram um presente que Deus me enviou. (…) Passei a agradecer a dádiva do nosso convívio, em vez de viver para sempre lamentando sua partida.”

Wanderléa engravidaria outras duas vezes de Lalo. Na primeira, aos 40 anos, quando esperava a filha Yasmim, ela inovou: aceitou posar nua, com o barrigão à mostra, para a revista masculina Status. Na edição histórica, Erasmo escreveu pequenos versos para acompanhar as imagens. No livro, ela lembra que a atriz americana Demi Moore escandalizou o mundo, seis anos depois, com a mesma atitude, posando para a Vanity Fair. “Alguns jornalistas saudaram sua atitude, dizendo que ela havia sido inovadora nesse sentido. Modéstia à parte, a pioneira a fazer isso foi uma cantora brasileira nascida em Governador Valadares, a filha do severo seu Salim.” Yasmim nasceu em 1985 e Jadde, dois anos depois.

Ela e o marido continuam juntos, mas vivendo em casas separadas. Em seu apartamento, Lalo montou um estúdio, onde ele e Wanderléa passam horas cantando e tocando bossa nova, samba-canção e rock contemporâneo. Com ele, ela gravou CDs marcantes, como o “Nova estação” (2008), com composições de Chico Buarque, Arnaldo Antunes, Johnny Alf, Roberto e Erasmo, entre outros, que ganhou o prêmio de melhor disco daquele ano pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). O disco a levou em excursão com a família: a banda era montada por Lalo, o cenário de Yasmim e percussão de Jadde. Em novembro de 2016, Wandeca inovou mais uma vez: convidada pelo produtor cultural Frederico Reder, ela estreou como protagonista no espetáculo musical “60! Década de arromba”, grande sucesso de público e crítica em suas temporadas carioca e paulista.