O programa Roda Viva, da TV Cultura, recebeu a ex-presidente da Irlanda Mary Robinson, que está lançando Justiça climática no Brasil pela Editora Civilização Brasileira. Advogada e militante em defesa dos recursos naturais do planeta, Robinson foi a primeira presidente mulher eleita na Irlanda e também foi Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos. No programa, Mary falou sobre o livro, seu trabalho, a COP-26 e questões urgentes como a Amazônia. A ex-presidente irlandesa ressaltou o protagonismo das mulheres para reverter o quadro de aumento de temperatura e criticou a política ambiental brasileira e revelou o que diria ao presidente Jair Bolsonaro se tivesse oportunidade:
“Tentaria transmitir o quão extraordinário é o Brasil ter uma parte tão grande da Amazônia, um dos maiores pulmões da humanidade, que está em perigo. E o senhor tem a oportunidade, e precisa, sim, de apoio. Não precisa de compensação, essa é a linguagem errada, mas precisa de apoio, e conseguiremos, se tiver as políticas certas. Empresas e outros países vão apoia-lo, pois todos têm interesse na Amazônia.”
Em seu novo livro, Justiça Climática, publicado pela Civilização Brasileira, Robinson alerta para os efeitos das alterações no clima, como as enchentes, tsunamis, furacões, colheitas perdidas e florestas incendiadas. Traçando um paralelo entre clima e direitos humanos, Robinson nos mostra como as comunidades marginalizadas são as mais afetadas por essas mudanças.
É necessário ouvir mais as mulheres para solucionar a crise climática
“Digo que precisamos de uma solução feminista, e isso não exclui os homens. Espero que muitos deles a adotem, aliás. Precisamos de igualdade, da paridade em todas as mesas, entre homens e mulheres, para termos decisões melhores. Mas é verdade que as mulheres, de maneira geral, têm uma forma de liderança que ajuda a lidar com a crise climática, e vimos que os governos femininos, em geral, se saíram melhor na COVID-19 pelo mesmo motivo, porque elas lideram com solução colaborativa de problema. Elas consultam, há menos ego envolvido, menos macheza. Eu conheço e estou envolvida em várias redes de lideranças femininas, e vejo muita confiança entre as líderes, porque, na verdade, nós chegamos onde chegamos porque acreditávamos com fervor em mudanças que precisavam acontecer.”
Costa Rica é o país que mais se aproxima de uma “justiça climática”
“Ele é quase totalmente dependente de energia limpa. Ele está do lado certo de várias questões de direitos humanos, as questões consideradas progressistas no Conselho de Direitos Humanos na ONU, etc. Também é um país sem exército, todas as coisas que são bons exemplos de como o mundo poderia ser melhor.”
Mary Robinson analisa ESG
“Critico muito um certo deslocamento que está acontecendo. Absolutamente ultrajante, é o chamado ‘greenwashing’. A questão, com o ESG [termo usado para descrever o quanto uma empresa procura reduzir danos ao meio ambiente, atuando de maneira sustentável, além de adotar as melhores práticas administrativas], é prestar mais atenção ao meio ambiente, ao social – ou seja, regras trabalhistas, segurança dos trabalhadores etc., acordos coletivos – e a governança: um conselho diretor equilibrado de muitas formas, tanto na raça quanto no gênero, e por aí vai. Tudo isso é bom para as empresas, mas, como qualquer outra coisa, podem acontecer abusos, exploração, medidas superficiais. Mas alguns países levam isso a sério. A coisa está tão séria agora que o ESG não basta. Tentar ser sustentável na sua empresa não basta. Você precisa dar mais um passo e ser “net positive”: regenerar, fazer além do que você precisa fazer, porque o mundo precisará disso e sua empresa se beneficiará.”
Como saber quais países estão cumprindo com o que prometeram na COP 26?
“Agora é possível aferir como os países estão cumprindo seus compromissos. Sabemos, no momento, que se todos fizessem o que prometeram no Acordo de Paris, se implementassem totalmente o que prometeram – e os países não estão fazendo isso -, teríamos um mundo com 2,7°C de aquecimento. Durante o G20, recebemos uma avaliação de quão perto estávamos de um mundo 1,5°C, e não estamos perto. Temos que verificar essa distância e pensar num projeto para cruzá-la, um mapa político, comprometer-se com metas mais ambiciosas não a cada 5 anos, não aumenta-las para atrair investidores em 2023, mas ter uma forma real de garantir que os países sofrerão pressão constantemente para definir metas mais ambiciosas, que as empresas sofrerão pressão para abandonar carvão, petróleo, gás etc., e que os países ricos que prometeram os cem bilhões sofrerão pressões não só para levantar cem bilhões em 2023, 2024 e 2025, mas mais do que isso, porque falharam em 2020 e podem não alcançar isso em 2021 na COP. É mais prestação de contas que precisamos incluir no sistema. Ela não é suficiente, mas temos maneiras de fazê-lo, porque a ciência melhorou a ponto de conseguirmos prever as coisas. E houve avanços, por exemplo, no metano. Ele motivou um acordo sério entre um grande número de Estados.
Qual o maior risco da COP 26?
“Acho que o maior risco, na COP26, será uma certa quebra de confiança entre aqueles países mais afetados pela mudança climática, que falam de justiça climática e não veem um compromisso dos maiores emissores, que são aqueles que já emitiam, mas também os grandes países emergentes, os G20. Se eles não agirem muito mais do que agem e não fizerem isso em Roma antes da COP, posso prever um problema de confiança na conferência, e com isso, o abismo na produção que o Programa Ambiental da ONU publicou é assustador, porque ele diz que todos os governos vão aumentar sua produção. Todos os países importantes, incluindo os EUA, vão aumentar o uso de petróleo e gás. Talvez reduzir o carvão, e o Reino Unido está reduzindo. E a Agência Internacional de Energia, que costumava ser muito conservadora e apoiava os combustíveis fósseis, já deixou claro que não deveria haver nenhuma nova exploração, sobretudo de carvão, mas tampouco de petróleo e gás. Vai ser difícil controlar as expectativas na COP, mas também assegurar politicamente que rumaremos para o teto de 1,5°C.”